quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Histórico da mobilização pelo diesel limpo

Leia o histórico da campanha liderada pelo Movimento Nossa São Paulo pela aplicação da resolução do Conama que determina o uso do diesel limpo no Brasil.


A resolução 315/2002 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) determinou que, a partir de janeiro de 2009, o diesel comercializado no Brasil tivesse, no máximo, 50 partículas por milhão (ppm) de enxofre. A proporção até dezembro de 2008 era de 500 ppm nas regiões metropolitanas e de 2000 ppm no interior. A substância, altamente cancerígena, é responsável pela morte de 3 mil pessoas somente na capital paulista. Em função disso, o Movimento se uniu a outras entidades para cobrar das autoridades federais e montadoras de veículos o cumprimento da resolução.

Entre outras ações, em setembro de 2007, foi realizado um debate que contou com a presença da então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, do secretário estadual do Meio Ambiente de São Paulo, Xico Graziano, e do secretário municipal do Meio Ambiente de São Paulo, Eduardo Jorge. Depois disso, as quase 400 organizações que integram o Movimento Nossa São Paulo assinaram uma representação no Ministério Público para que a resolução 315/2002 do Conama não sofra alterações nem adiamentos. Três semanas depois, a ANP divulgou as especificações técnicas para o diesel 50 ppm. Como consequência disso também foram realizadas audiências públicas na Câmara dos Deputados, das quais o Movimento participou como expositor.

Em abril de 2008, em sessão histórica, o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (CONAR) decidiu suspender dois anúncios da Petrobras por divulgarem a idéia falsa de que a estatal tem contribuído para a qualidade ambiental e o desenvolvimento sustentável do país. O Conar julgou ação movida por entidades governamentais e não-governamentais, como as secretarias estaduais de meio ambiente de São Paulo e Minas Gerais, do Verde e Meio Ambiente do Município de São Paulo, o Fórum Paulista de Mudanças Climáticas Globais e de Biodiversidade, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o Greenpeace, a ONG Amigos da terra – Amazônia Brasileira, o Instituto Akatu, o Movimento Nossa São Paulo, a SOS Mata Atlântica, a Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável – FBDS, e o IBAP – Instituto Brasileiro de Advocacia Pública.

Em agosto e setembro, o Movimento participou de três reuniões no Ministério do Ambiente, em Brasília, com representantes do Governo Federal, da Petrobras, das montadoras de veículos, das distribuidoras de combustíveis, do Ministério Público Federal. O objetivo era negociar os prazos para o cumprimento da resolução do Conama. A Petrobras e as montadoras pediram o adiamento do prazo e propuseram medidas compensatórias devido ao atraso.

Em setembro, movido pelas pressões da sociedade civil, o Ministro Carlos Minc apresentou em reunião do Conama uma nota técnica na qual afirmava que não iria encaminhar ao conselho “flexibilizações ou postergações” referentes à resolução 315 emitida pelo órgão em 2002. E apresentou nova proposta de resolução na qual antecipa para janeiro de 2012 a distribuição do diesel com 10 ppm S para todo o Brasil, como já ocorre na Europa. A previsão anterior era de que o diesel S-10 só seria comercializado em 2016. A proposta será submetida a votação.

Ainda em setembro, o juiz da 19ª Vara Federal de São Paulo, José Carlos Motta, concedeu liminar que obriga a Petrobras a fornecer o diesel com 50 partículas por milhão de enxofre (S-50) para os veículos novos que entrarem no mercado a partir de 01 de janeiro de 2009, em pelo menos uma bomba em cada posto de abastecimento. O juiz complementou a decisão determinando que o novo diesel deverá ter preço bem próximo do combustível atual. A ação civil pública foi proposta pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente, para vigorar em todo o Estado, e complementada pelo Ministério Público Federal com solicitação para valer em todo o País.

Para pressionar as autoridades, as montadoras e as petrolíferas, o Movimento iniciou um abaixo-assinado. O documento foi entregue ao Ministro Carlos Minc, a embaixadas no Brasil dos países que sediam as principais montadoras de veículos a diesel, para conselheiros do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e para organismos nacionais e internacionais envolvidos com as questões de responsabilidade social empresarial e de direitos humanos.

Acordo põe fim à resolução 315/2002 do Conama

No dia 31 de outubro de 2008, contrariando os interesses públicos e a saúde da população que respira o ar contaminado nas grandes cidades brasileiras, um acordo fechado às escuras, sem a participação da sociedade civil, adiou por mais quatro anos a comercialização do diesel com menos quantidade de enxofre. A decisão foi tomada na presença do Ministério Público Federal (MPF) e ocorreu entre o governo federal e representantes da Petrobras, da Fecombustível, da Agência Nacional de Petróleo (ANP), do governo do estado de São Paulo, da Anfavea e das montadoras de motores.

Conforme o acordo homologado no dia 5 de novembro desde 1º de janeiro de 2009, passou a ser obrigatória a utilização do diesel S50 nas frotas cativas de ônibus urbanos dos municípios de São Paulo e Rio de Janeiro. Até 2011, gradativamente, a obrigação passa a valer para as cidades de Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador e para as regiões metropolitanas de São Paulo, da Baixada Santista, Campinas, São José dos Campos e Rio de Janeiro.

Além disso, a Petrobras, desde de 1º de janeiro foi obrigada a substituir totalmente a oferta do diesel com 2.000 ppm S por um novo diesel com 1.800 ppm. E, somente a partir de janeiro de 2014, o diesel com 1.800 ppm S será trocado por um com 500 ppmS – padrão exatamente igual ao comercializado atualmente nas regiões metropolitanas. Para o não cumprimento da Resolução 315/02 do Conama, montadoras de veículos e motores e a indústria do petróleo alegaram falta de tempo e de logística.

Na tentativa de “compensar” a sociedade brasileira pela morte de milhares de pessoas todos os anos e pelos custos ao serviço público de saúde, ficou decidido que a Petrobras e as montadoras terão de bancar projetos ambientais. As montadoras custearão a construção de um laboratório de testes de motores (R$ 12 milhões), uma pesquisa nacional sobre emissões de poluentes (R$ 500 mil) e a fiscalização da emissão da fumaça preta por ônibus e caminhões na cidade de SP (R$ 200 mil). Já a Petrobras mandará R$ 1 milhão para o sistema de fiscalização da emissão da fumaça de São Paulo."

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Carta aberta de Marina Silva a Lula sobre a Medida Provisória 458, conhecida como MP da Grilagem

Leia abaixo a íntegra da carta aberta enviada pela senadora Marina Silva ao presidente da República:


Carta aberta ao Presidente da República

Brasília, 04 de junho de 2009

Exmo. Sr.

Luiz Inácio Lula da Silva

DD Presidente da República

Sr. Presidente,

Vivemos ontem um dia histórico para o país e um marco para a Amazônia, com a aprovação final, pelo Senado Federal, da Medida Provisória 458/09, que trata sobre a regularização fundiária da região. Os objetivos de estabelecer direitos, promover justiça e inclusão social, aumentar a governança pública e combater a criminalidade, que sei terem sido sua motivação, foram distorcidos e acabaram servindo para reafirmar privilégios e o execrável viés patrimonialista que não perde ocasião de tomar de assalto o bem público, de maneira abusiva e incompatível com as necessidades do País e os interesses da maioria de sua população.

Infelizmente, após anos de esforços contra esse tipo de atitude, temos, agora, uma história feita às avessas, em nome do povo mas contra o povo e contra a preservação da floresta e o compromisso que o Brasil assumiu de reduzir o desmatamento persistente que dilapida um patrimônio nacional e atenta contra os esforços para conter o aquecimento global.

O maior problema da Medida Provisória são as brechas criadas para anistiar aqueles que cometeram o crime de apropriação de grandes extensões de terras públicas e agora se beneficiam de políticas originalmente pensadas para atender apenas aqueles posseiros de boa-fé, cujos direitos são salvaguardados pela Constituição Federal.

Os especialistas que acompanham a questão fundiária na Amazônia afirmam categoricamente que a MP 458, tal como foi aprovada ontem, configura grave retrocesso, como aponta o Procurador Federal do Estado do Pará, Dr. Felício Pontes: “A MP nº 458 vai legitimar a grilagem de terras na Amazônia e vai jogar por terra quinze anos de intenso trabalho do Ministério Público Federal, no Estado do Pará, no combate à grilagem de terras”.

Essa é a situação que se espraiará por todos os Estados da Amazônia. E em sua esteira virá mais destruição da floresta, pois, como sabemos, a grilagem sempre foi o primeiro passo para a devastação ambiental.

Sendo assim, Senhor Presidente, está em suas mãos evitar um erro de grandes proporções, não condizente com o resgate social promovido pelo seu governo e com o respeito devido a tantos companheiros que deram a vida pela floresta e pelo povo Amazônia. São tantos, Padre Jósimo, Irmã Dorothy, Chico Mendes, Wilson Pinheiro – por quem V. Excia foi um dia enquadrado na Lei de Segurança Nacional – que regaram a terra da Amazônia com o seu próprio sangue, na esperança de que, um dia, em um governo democrático e popular, pudéssemos separar o joio do trigo.

Em memória deles, Sr. Presidente, e em nome do patrimônio do povo brasileiro e do nosso sonho de um País justo e sustentável, faço este apelo para que vete os dispositivos mais danosos da MP 458, que estão discriminados abaixo.

Permita-me também, Senhor Presidente, e com a mesma ênfase, lhe pedir cuidados especiais na regulamentação da Medida Provisória. É fundamental que o previsto comitê de avaliação da implementação do processo de regularização fundiária seja caracterizado pela independência e tenha assegurada a efetiva participação da sociedade civil, notadamente os segmentos representativos do movimento ambientalista e do movimento popular agrário.

Por tudo isso, Sr. Presidente, peço que Vossa Excelência vete os incisos II e IV do artigo 2º; o artigo 7º e o artigo 13.

Com respeito e a fraternidade que tem nos unido, atenciosamente,

Senadora Marina Silva




Vetos Solicitados à PLV nº 9, de 2009 (proveniente da MP 458)



1. _Incisos II e IV do art. 2º:

Texto do PLV nº 9, de 2009:


Art. 2º Para os efeitos desta Lei, entende-se por:

II – ocupação indireta: aquela exercida somente por interposta pessoa;

IV – exploração indireta: atividade econômica exercida em imóvel rural, por meio de preposto ou assalariado;

Justificativa do veto

Os incisos II e IV do artigo 2º estabelecem a definição, para efeitos da aplicação da lei, de ocupação indireta e de exploração indireta.

Essas formas de ocupação e exploração não devem ser beneficiadas com a regularização fundiária, pois não consideram os critérios de relevante interesse público e da função social da terra. Para ser coerente com o veto ao art. 7º, a definição dessas formas de ocupação e exploração deixa de ter uso para a aplicação da lei.



2. Art. 7º:

Texto do PLV nº 9, de 2009:


Art. 7º Mediante processo licitatório que assegure ao ocupante direito de preferência, far-se-á a regularização em área de até quinze módulos e não superior a mil e quinhentos hectares, com ocupação mansa e pacífica, anterior a 1º de dezembro de 2004, efetivada por:

I – pessoa natural que exerça exploração indireta da área ou que seja proprietária de imóvel rural em qualquer parte do território nacional, respeitado o disposto nos incisos I, III e V do caput do art. 5º;

II – pessoa jurídica constituída sob as leis brasileiras, anteriormente à data referida no caput deste artigo, que tenha sede e administração no País, respeitado o disposto nos incisos II e III do caput do art. 5º.

Justificativa do veto

O art. 7º amplia extraordinariamente as possibilidades de legalização de terras griladas, permitindo a transferência de terras da União para pessoas jurídicas, para quem já possui outras propriedades rurais e para a ocupação indireta.

A titulação em nome de prepostos, que no projeto ganha a denominação de “ocupação indireta”, é a forma mais evidente de legalização da grilagem. Nas últimas décadas, a região amazônica vem sofrendo com toda a sorte de esquemas de falsificação de documentos em órgãos públicos e cartórios, invariavelmente com a utilização de prepostos que encobertam estratégias de ocupação irregular e concentração fundiária.

A possibilidade de titulação para pessoas jurídicas, além de ampliar as possibilidades de fraude, oferece um caminho rápido e de baixo risco de burla ao disposto no parágrafo primeiro do artigo 188 da Constituição Federal, que condiciona à aprovação do Congresso Nacional a alienação ou concessão de terras públicas com área superior a 2.500 hectares. A titulação de 1.500 hectares a uma empresa e de outros 1.500 ao sócio proprietário dessa mesma empresa, em área contígua, é absolutamente compatível com o projeto aprovado pelo Congresso, mas incompatível com a Constituição Federal.

O art. 7º desrespeita também o disposto no caput do artigo 188 da Constituição Federal ao incorporar formas de regularização completamente estranhas e antagônicas aos objetivos da política agrária, enquanto o comando constitucional determina que a regularização fundiária deve ser compatibilizada a esta



3. Art. 13:

Texto do PLV nº 9, de 2009:

Art. 13. Os requisitos para a regularização fundiária dos imóveis de até quatro módulos fiscais serão averiguados por meio de declaração do ocupante, sujeita a responsabilização nas esferas penal, administrativa e civil, dispensada a vistoria prévia.

Justificativa do veto

O Estado brasileiro não pode abrir mão do instrumento mais importante de controle do processo de regularização fundiária, porque não desenvolveu capacidade organizacional para realizar o processo com a segurança exigida pela sociedade.

A vistoria é fundamental para a identificação da ocupação direta, da utilização indevida de prepostos para ampliar os limites permitidos pelo projeto e, principalmente, da existência de situações de conflito na área a ser regularizada, o que, em muitos casos, pode significar a usurpação de direitos de pequenos posseiros isolados, com dificuldade de acesso a informação, de mobilidade e de reivindicação de seus direitos.

Por meio da regulamentação, pode ser definido procedimentos mais ágeis de vistoria nas pequenas propriedades, de até 1 Módulo Fiscal, conferindo a eficiência desejada na ação de regularização, sem abrir mão dos instrumentos de controle mínimos e da segurança necessária para a sociedade.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Trecho do sermão de Padre Vieira

"E que coisa há na confusão deste mundo mais semelhante ao Inferno, que qualquer destes vossos engenhos e tanto mais, quanto de maior fábrica? Por isso foi tão bem recebida aquela breve e discreta definição de quem chamou a um engenho de açúcar doce inferno. E verdadeiramente quem vir na escuridão da noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes: as labaredas que estão saindo a borbotões de cada uma pelas duas bocas, ou ventas, por onde respiram o incêndio: os etíopes, ou ciclopes banhados em suor tão negros como robustos que subministram a grossa e dura matéria ao fogo, e os forcados com que revolvem e atiçam; as caldeiras ou lagos ferventes, com os tachões sempre batidos e rebatidos, já vomitando escumas, exalando nuvens de vapores mais de calor, que de fumo, e tornando-os a chover para outra vez os exalar: o ruído das rodas, das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo sem momento de trégua, nem de descanso: quem vir enfim toda a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela babilónia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto etnas e vesúvios, que é uma semelhança de Inferno."

Padre Antônio Vieira
Sermões do rosário: sermão décimo quarto, 1633

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Velha Praga

Publicado como artigo em O Estado de S. Paulo, em 12 de novembro de 1914 e, posteriormente, transformado em conto no livro Urupês


Andam todos em nossa terra por tal forma estonteados com as proezas infernais dos belacíssimos “vons” alemães, que não sobram olhos para enxergar males caseiros.

Venha, pois, uma voz do sertão dizer às gentes da cidade que se lá fora o fogo da guerra lavra implacável, fogo não menos destruidor devasta nossas matas, com furor não menos germânico.

Em agosto, por força do excessivo prolongamento do inverno, “von Fogo” lambeu montes e vales, sem um momento de tréguas, durante o mês inteiro.

Vieram em começos de setembro chuvinhas de apagar poeira e, breve, novo “verão de sol” se estirou por outubro a dentro, dando azo a que se torrasse tudo quanto escapara à sanha de agosto.

A serra da Mantiqueira ardeu como ardem aldeias na Europa, e é hoje um cinzeiro imenso, entremeado aqui e acolá, de manchas de verdura – as restingas úmidas, as grotas frias, as nesgas salvas a tempo pela cautela dos aceiros. Tudo mais é crepe negro.

À hora em que escrevemos, fins de outubro, chove. Mas que chuva caínha! Que miséria d’água! Enquanto caem do céu pingos homeopáticos, medidos a conta-gotas, o fogo, amortecido mas não dominado, amoita-se insidioso nas piúcas[1], a fumegar imperceptivelmente, pronto para rebentar em chamas mal se limpe o céu e o sol lhe dê a mão.

Preocupa à nossa gente civilizada o conhecer em quanto fica na Europa por dia, em francos e cêntimos, um soldado em guerra; mas ninguém cuida de calcular os prejuízos de toda sorte advindos de uma assombrosa queima destas. As velhas camadas de humus destruídas; os sais preciosos que, breve, as enxurradas deitarão fora, rio abaixo, via oceano; o rejuvenescimento florestal do solo paralizado e retrogradado; a destruição das aves silvestres e o possível advento de pragas insetiformes; a alteração para piora do clima com a agravação crescente das secas; os vedos e aramados perdidos; o gado morto ou depreciado pela falta de pastos; as cento e uma particularidades que dizem respeito a esta ou aquela zona e, dentro delas, a esta ou aquela “situação” agrícola.

Isto, bem somado, daria algarismos de apavorar; infelizmente no Brasil subtrai-se; somar ninguém soma...

É peculiar de agosto, e típica, esta desastrosa queima de matas; nunca, porém, assumiu tamanha violência, nem alcançou tal extensão, como neste tortíssimo 1914 que, benza-o Deus, parece aparentado de perto com o célebre ano 1000 de macabra memória. Tudo nele culmina, vai logo às do cabo, sem conta nem medida. As queimas não fugiram à regra.

Razão sobeja para, desta feita, encarnarmos a sério o problema. Do contrário a Mantiqueira será em pouco tempo toda um sapezeiro sem fim, erisipelado de samambaias – esses dois términos à uberdade das terras montanhosas.

Qual a causa da renitente calamidade?

E mister um rodeio para chegar lá.

A nossa montanha é vítima de um parasita, um piolho da terra, peculiar ao solo brasileiro como o “Argas” o é aos galinheiros ou o “Sarcoptes mutans” à perna das aves domésticas. Poderíamos, analogicamente, classificá-lo entre as variedades do “Porrigo decalvans”, o parasita do couro cabeludo produtor da “pelada”, pois que onde ele assiste[2] se vai despojando a terra de sua coma vegetal até cair em morna decrepitude, núa e descalvada. Em quatro anos, a mais ubertosa região se despe dos jequitibás magníficos e das perobeiras milenárias – seu orgulho e grandeza, para, em achincalhe crescente, cair em capoeira, passar desta à humildade da vassourinha e, descendo sempre, encruar definitivamente na desdita do sapezeiro – sua tortura e vergonha.

Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a picapau[3] e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se.

É de vê-lo surgir a um sítio novo para nele armar a sua arapuca de “agregado; nômade por força de vago atavismos, não se liga à terra, como o campônio europeu “agrega-se”, tal qual o “sarcopte”, pelo tempo necessário à completa sucção da seiva convizinha; feito o que, salta para diante com a mesma bagagem com que ali chegou.

Vem de um sapezeiro para criar outro. Coexistem em íntima simbiose: sapé e caboclo são vidas associadas. Este inventou aquele e lhe dilata os domínios; em troca o sapé lhe cobre a choça e lhe fornece fachos para queimar a colméia das pobres abelhas.

Chegam silenciosamente, ele e a “sarcopta” fêmea, esta com um filhote no útero, outro ao peito, outro de sete anos à ourela da saia – este já de pitinho na boca e faca à cinta. Completam o rancho um cachorro sarnento – Brinquinho, a foice, a enxada, a picapau, o pilãozinho de sal, a panela de barro, um santo encardido, três galinhas pévas e um galo índio. Com estes simpes ingredientes, o fazedor de sapezeiros perpetua a espécie e a obra de esterilização iniciada com os remotíssimos avós.

Acampam.

Em três dias uma choça, que por eufemismo chamam casa, brota da terra como um urupê. Tiram tudo do lugar, os esteios, os caibros, as ripas, os barrotes, o cipó que os liga, o barro das paredes e a palha do teto. Tão íntima é a comunhão dessas palhoças com a terra local, que dariam idéia de coisa nascida do chão por obra espontânea da natureza – se a natureza fosse capaz de criar coisas tão feias.

Barreada a casa, pendurado o santo, está lavrada a sentença de morte daquela paragem.

Começam as requisições. Com a picapau o caboclo limpa a floresta das aves incautas. Pólvora e chumbo adquire-os vendendo palmitos no povoado vizinho. É este um traço curioso da vida do caboclo e explica o seu largo dispêndio de pólvora; quando o palmito escasseia, raream os tiros, só a caça grande merecendo sua carga de chumbo; se o palmital se extingue, exultam as pacas: está encerrada a estação venatória.

Depois ataca a floresta. Roça e derruba, não perdoando ao mais belo pau. Árvores diante de cuja majestosa beleza Ruskin choraria de comoção, ele as derriba, impassível, para extrair um mel-de-pau escondido num ôco.

Pronto o roçado, e chegado o tempo da queima, entra em funções o isqueiro. Mas aqui o “sarcopte” se faz raposa. Como não ignora que a lei impõe aos roçados um aceiro de dimensões suficientes à circunscrição do fogo, urde traças para iludir a lei, cocando dest’arte a insigne preguiça e a velha malignidade.

Cisma o caboclo à porta da cabana[4].

Cisma, de fato, não devaneios líricos, mas jeitos de transgredir as posturas com a responsabilidade a salvo. E consegue-o. Arranja sempre um álibi demonstrativo de que não esteve lá no dia do fogo.

Onze horas.

O sol quase a pino queima como chama. Um “sarcopte” anda por ali, ressabiado. Minutos após crepita a labareda inicial, medrosa, numa touça mais seca; oscila incerta; ondeia ao vento; mas logo encorpa, cresce, avulta, tumultua infrene e, senhora do campo, estruge fragorosa com infernal violência, devorando as tranqueiras, estorricando as mais altas frondes, despejando para o céu golfões de fumo estrelejado de faíscas.

É o fogo-de-mato!

E como não o detém nenhum aceiro, esse fogo invade a floresta e caminha por ela a dentro, ora frouxo, nas capetingas[5] ralas, ora maciço, aos estouros, nas moitas de taquaruçú; caminha sem tréguas, moroso e tíbio quando a noite fecha, insolente se o sol o ajuda.

E vai galgando montes em arrancadas furiosas, ou descendo encostas a passo lento e traiçoeiro até que o detenha a barragem natural dum rio, estrada ou grota noruega[6].

Barrado, inflete para os flancos, ladeia o obstáculo, deixa-o para trás, esgueira-se para os lados – e lá continua o abrasamento implacável. Amordaçado por uma chuva repentina, alapa-se nas piúcas, quieto e invisível, para no dia seguinte, ao esquentar do sol, prosseguir na faina carbonizante.

Quem foi o incendiário? Donde partiu o fogo?

Indaga-se, descobre-se o Nero: é um urumbeva qualquer, de barba rala, amoitado num litro[7] de terra litigiosa.

E agora? Que fazer? Processá-lo?

Não há recurso legal contra ele. A única pena possível, barata, fácil e já estabelecida como praxe, é “tocá-lo”.

Curioso este preceito: “ao caboclo, toca-se”.

Toca-se, como se toca um cachorro importuno, ou uma galinha que vareja pela sala. E tão afeito anda ele a isso, que é comum ouví-lo dizer: “Se eu fizer tal coisa o senhor não me toca?”

Justiça sumária – que não pune, entretanto, dado o nomadismo do paciente.

Enquanto a mata arde, o caboclo regala-se.

- Êta fogo bonito!

No vazio de sua vida semi-selvagem, em que os incidentes são um jacú abatido, uma paca fisgada n’água ou o filho novimensal, a queimada é o grande espetáculo do ano, supremo regalo dos olhos e dos ouvidos.

Entrado setembro, começo das “águas”, o caboclo planta na terra em cinzas um bocado de milho, feijão e arroz; mas o valor da sua produção é nenhum diante dos males que para preparar uma quarta de chão ele semeou.

O caboclo é uma quantidade negativa. Tala cincoenta alqueires de terra para extrair deles o com que passar fome e frio durante o ano. Calcula as sementeiras pelo máximo da sua resistência às privações. Nem mais, nem menos. “Dando para passar fome”, sem virem a morrer disso, ele, a mulher e o cachorro – está tudo muito bem; assim fez o pai, o avô; assim fará a prole empanzinada que naquele momento brinca nua no terreiro.

Quando se exaure a terra, o agregado muda de sítio. No lugar fica a tapera e o sapezeiro. Um ano que passe e só este atestará a sua estada ali; o mais se apaga como por encanto. A terra reabsorve os frágeis materiais da choça e, como nem sequer uma laranjeira ele plantou, nada mais lembra a passagem por ali do Manoel Peroba, do Chico Marimbondo, do Jéca Tatú ou outros sons ignaros, de dolorosa memória para a natureza circunvizinha.


[1] Tocos semi-carbonizados.

[2] Reside; está estabelecida.

[3] Espingarda de carregar pela boca.

[4] Verso de Ricardo Gonçalves

[5] Capins de mato dentro, sempre ralos, magrelas.

[6] Grota fria onde não bate o sol.

[7] A terra se mede pela quantidade de milho que nela pode ser plantada; daí, um alqueire, uma quarta, um litro de terra.



Agradecimentos: à Marilene A. Silva por adaptar o texto e ao Marcelo Romão, por localizá-lo.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O projeto de lei da municipalização da água

PROJETO DE LEI N° 408/09
Exposição de Motivos

Senhor Presidente,
Senhores Vereadores,

O presente Projeto de Lei, tem por objetivo a criação do Fundo Municipal de Saneamento Básico do Município de Cornélio Procópio - "FUNSAE".

Como é de conhecimento de todos, em 29/06/1976 o Município de Cornélio Procópio, autorizado pela Lei n° 891/76, firmou contrato com a SANEPAR, tendo como objeto a operação e exploração, pelo período de trinta anos, dos serviços públicos dos sistemas de abastecimento de água, coleta e remoção de esgotos na cidade de Cornélio Procópio, sendo incluído, posteriormente, pela Lei 113/79, o Distrito de Congonhas.

Assim, tendo em vista a ocorrência de seu termo final e já realizadas diversas prorrogações anuais sem que a empresa concessionária assumisse formal compromisso de deixar parte de suas riquezas, auferidas mensalmente no Município, em beneficio de nossa comunidade, necessário se faz criar uma alternativa sólida, de modo a garantir a continuidade da boa qualidade dos serviços e geração de riquezas para o Município.

A criação do FUNSAE é proposta com a finalidade de arrecadar e aplicar as tarifas provenientes da exploração dos serviços de abastecimento de água e esgoto do Município e prover recursos para custear planos, programas, ações, projetos, obras e serviços visando melhorar e ampliar o abastecimento de água e o sistema de esgotamentos sanitários.

Na certeza de que os nobres vereadores dessa Egrégia Casa de Leis saberão avaliar e deliberar a presente proposição com a relevância que o assunto requer, contamos, com a rápida tramitação e aprovação unânime.

Atenciosamente


AMIN JOSÉ HANNOUCHE
Prefeito



PROJETO DE LEI N° 408/09
Data: 09/02/09


SÚMULA: Cria o Fundo Municipal de Saneamento Básico do Município de
Cornélio Procópio.

AMIN JOSE HANNOUCHE, Prefeito do Município de Cornélio Procópio, Estado do Paraná, usando das atribuições que lhe são conferidas por lei,

FAZ SABER

a todos que a Câmara Municipal aprovou e ele sanciona e promulga a seguinte

LEI:


Art. 1° - Fica criado o Fundo Municipal de Saneamento Básico do Município de Cornélio Procópio com a finalidade de arrecadar e aplicar as tarifas provenientes da exploração dos serviços de abastecimento de água e esgoto do Município, e prover recursos para custear pianos, programas, ações, projetos, obras e serviços visando melhorar e ampliar o abastecimento de água e o sistema de esgotamentos sanitários.

Parágrafo Único - O Fundo de Saneamento de que trata este artigo será identificado pela sigla "FUNSAE".

Art. 2º - Constitui recursos do Fundo Municipal de Saneamento Básico, as receitas provenientes:


I - da arrecadação das tarifas de água e esgoto;

II - de multas aplicadas com base no Regulamento dos Serviços;

III - de taxas de ligação e religação de água e esgoto;

IV - da remuneração de serviços prestados aos usuários do sistema;

V - de dotações orçamentárias próprias, constantes do Orçamento Geral do Município;

VI- do produto de operações de credito contratadas para custear investimentos destinados ao saneamento básico do Município;

VII- de contribuições, subvenções e auxílios da Administração Direta e Indireta Federal, Estadual e Municipal;

VIII- de acordos, convênios, contratos e consórcios, recursos provenientes de ajuda e cooperação intencional e de acordos bilaterais entre o Município e Instituições Publicas e Privadas;

IX- das remunerações oriundas de aplicações financeiras;

X - dos rendimentos de qualquer natureza, decorrentes da aplicação de seu patrimônio;
XI - de dotações, ligadas e contribuições que venha a receber de pessoas físicas ou jurídicas, entidades públicas ou privadas;

XII - de outras receitas que lhe venham a ser destinada.

Art. 3° - Os recursos financeiros do Fundo serão depositados em conta especifica, aberta e mantida em agenda de estabelecimento oficial de credito, e serão administrados pela Secretaria Municipal de Administração e Desenvolvimento Institucional, a quem esta diretamente subordinado.

Parágrafo Único - A movimentação e aplicação dos recursos também serão feitas pelo titular da Secretaria Municipal de Administração e Desenvolvimento Institucional, em conjunto com o Gestor Financeiro do Fundo.

Art. 4° - Os recursos do Fundo Municipal de Saneamento Básico, só poderão ser aplicados na operação, manutenção, melhorias e ampliação dos serviços de abastecimento de água, de esgotos sanitários e serviços relacionados com saneamento básico, meio ambiente, recursos hídricos e infra-estrutura de áreas de expansão urbana, nestas incluídas as que se destinarem a instalação de industrias ou Habitação Popular.

Art. 5° - Todos os bens, materiais e equipamentos adquiridos com recursos do Fundo farão parte do patrimônio do Município.

Art. 6° - O orçamento do Fundo Municipal de Saneamento Básico, integrara o orçamento do Município, em obediência ao principio da unidade.

Art. 7° - O Fundo deve atender as disposições estabelecidas na Lei Federal n.° 4.320, de 17 de marco de 1964, na Lei Federal n° 101/00 - Lei de Responsabilidade Fiscal, na Lei 8666/93 e suas alterações, na Legislação Estadual aplicável, bem como, as constantes de normas baixadas pela Controladoria do Município.

Art. 8° - O orçamento do Fundo Municipal de Saneamento Básico, para o exercício financeiro de 2009, tem a sua receita estimada em R$ 12.000.000,00 (doze milhões), e a sua despesa fixada em igual valor.

§ 1° - A receita do FUNSAE será realizada mediante a arrecadação dos recursos previstos no artigo 2° desta Lei, com os seguintes desdobramentos:
RECEITAS CORRENTES R$ 12.000.000,00

§ 2° - As despesas do FUNSAE, observarão a programação e classificações constantes dos inclusos anexos, como segue:
1- DESPESAS CORRENTES R$ 12.000.000,00

§ 3° - Integraram o Orçamento do FUNSAE, para o exercício de 2009, os anexos exigidos pela Lei Federal n° 4320/64 e demais legislações e normas emitidas pela Secretaria do Tesouro Nacional quando da conclusão dos estudos que estão sendo desenvolvidos.

Art. 9° - Ficam acrescidas no Piano Plurianual de Investimento do Município de Cornélio Procópio, aprovado pela Lei n.° 081, de 08 de Dezembro de 2005, as despesas de capital e as despesas correntes de dorso continuada, decorrentes previstas no parágrafo 3°; Artigo 8° que farão parte integrante desta Lei.

Art. 10° - Ficam incluídos na Lei de Diretrizes Orçamentárias, aprovada pela Lei n.° 445, de 22 de Setembro de 2008, os anexos previstos no § 3°, do artigo desta Lei.

Art. 11° - Ficam incluídos na Lei Orçamentária Anual aprovada pela Lei n° 457 de 20 de
Novembro de 2008, os anexos previstos no § 3°, do artigo desta Lei.

Art. 12° - Fica criado um cargo de Gestor do Fundo Municipal de Saneamento Básico, de
provimento em comissão, com vencimento de R$3.500,00.

Art. 13° - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, com efeitos retroativos a 1°
de Janeiro de 2009.

Art. 14° - Revogam-se as disposições em contrário.

Gabinete do Prefeito, 09 de fevereiro de 2009.


AMIN JOSE HANNOUCHE
Prefeito

Claudio Trombini Bernardo
Procurador Geral do Município